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Transgeracionalidade

Heranças familiares: aspectos transgeracionais

A dinâmica familiar e a transgeracionalidade

A família, na dinâmica de suas relações, é formadora das identidades pessoais e sociais. É o espaço em que se desenvolve o sentimento de pertencimento e individuação. É a base da sociedade, encarregada de reproduzir e manter a organização social e seus valores, da transmissão da herança simbólica.

A literatura a respeito de herança é vasta, tanto na perspectiva sistêmica quanto na perspectiva psicanalítica, abrangendo os mais variados enfoques. Esse trabalho utiliza-se das contribuições dos estudos das famílias realizados por Ivan Boszormenyi-Nagy, Helm Stierling, James Framo, Murray Bowen, Maurizio Andolfi, Júlia Bucher, Adriana Wagner e Denise Falcke.

Sabe-se que na família, os hábitos, costumes, valores e padrões de comportamento são transmitidos e também questionados. Sendo a família um espaço de convivência de diferentes gerações, é o local onde pode ocorrer o diálogo entre as diferentes concepções de mundo, inclusive familiar, específicas de cada geração.

Em um sentido histórico, a geração torna-se a medida da mudança dos contextos econômico, social e cultural nos quais a família está inserida. Percebe- se, situando o período que cada geração viveu, que as vivências são marcadas pelo tempo, por épocas com repercussões importantes para a compreensão de questões vinculadas ao transgeracional. Nesse sentido, o sujeito é analisado como o produto de muitas heranças que ocorrem no interior de sua família, mas também da herança que ele recebe do contexto em que sua família está inserida no momento de seu nascimento e no período de seu desenvolvimento. Esse conjunto de heranças certamente contribuirá para a formação de sua identidade (Bucher, 2008).

Optamos por utilizar, neste estudo, o termo transgeracionalidade como aquele “representativo dos processos que são transmitidos pela família de uma geração a outra e se mantêm presentes ao longo da história familiar” (Falcke eWagner, 2005, p.26). Sendo assim, consideramos que desde a infância, as experiências vivenciadas com as figuras significativas do mundo familiar vão influenciando, sem que o sujeito perceba, as suas decisões e as suas escolhas afetivas, sexuais e profissionais, entre outras. São experiências que envolvem a cultura, a moral e os valores das gerações (Falcke e Wagner, 2005).

Falcke e Wagner (2005) apontam que é como se todas as pessoas possuíssem vozes familiares gravadas internamente. O que diferencia uma pessoa da outra seria o volume dessas vozes e sua influência sobre os indivíduos. Assim, podemos pensar que muitos acontecimentos de uma geração podem ser o reflexo dos acontecimentos da geração anterior; ou seja, os processos de transmissão transgeracional têm uma importância fundamental sobre a vida dos indivíduos. Pode-se afirmar que existe um “idioma” dentro de cada grupo familiar que estabelece a comunicação transgeracional e é por meio dele que as dificuldades e anseios dos pais são transmitidos aos seus filhos (Costa, 2002).

O estudo da transgeracionalidade implica na compreensão dos padrões familiares que se repetem de uma geração a outra. E esse padrão é definido a partir dos fenômenos de lealdades, valores, mitos, ritos e legados; esses fatores são considerados como uma força invisível que maneja as pessoas.

Na família, a lealdade marca o pertencimento a um grupo e aparece tanto como uma característica grupal, como também, sob forma de uma atitude individual; o seu grau irá depender da posição de cada indivíduo dentro do seu universo, o que se deve ao papel que foi delegado a cada membro da família, transgeracionalmente.

De acordo com Boszormenyi-Nagy e Spark (1973) a palavra lealdade deriva-se do vocábulo francês “loi”, que significa lei. Entretanto, assinalam que mais do que uma simples noção de uma conduta respeitosa da lei, a sua natureza reside na trama invisível de expectativas do grupo. Pressupõem que para ser um membro leal a um grupo, o indivíduo deve interiorizar as expectativas grupais e assumir uma série de atitudes a fim de cumprir os seus mandatos interiorizados.

Os autores ressaltam que as famílias têm suas próprias leis em forma de expectativas compartilhadas. Cada membro do grupo familiar encontra-se sujeito a expectativas que se cumprem ou não. Nos filhos pequenos essas expectativas se cumprem por meio de medidas disciplinares externas; naqueles filhos maiores ou adultos, elas se cumprem devido aos compromissos de lealdade internalizados.

Desta forma, o indivíduo pode se submeter-se tanto ao mandato das expectativas externas como às obrigações interiorizadas.

O conceito de lealdade é fundamental para compreender a estruturação relacional das famílias. Os compromissos de lealdade são como fibras invisíveis, porém resistentes que mantêm unidos fragmentos complexos de conduta relacional nas famílias. O que parece ser uma conduta destrutiva e irritante por parte de um membro para com o outro, pode não ser experimentado como tal pelos outros participantes se a conduta se ajusta a uma lealdade familiar básica. Assim, por exemplo, dois irmãos podem levar ao extremo seu ciúme e rivalidade por causa dos pais, de maneira que o fracasso matrimonial destes fique mascarado. O filho inconscientemente parentalizado pode ser usado para saldar, mesmo que de forma tardia, as contas dos pais para com os próprios progenitores. É possível que um membro “enfermo” complemente de maneira eficaz o papel de outro membro socialmente criativo (Boszormenyi-Nagy e Spark, 1973).

O membro leal procura alinhar os seus interesses com os do grupo familiar, participando do delineamento dos objetivos da sua família e compartilhando o seu ponto de vista. Todas as pessoas da família adquirem um compromisso em relação às expectativas estruturadas do grupo, com um forte componente de obrigação ética. Pode-se dizer, então, que a lealdade é uma força que coloca o sujeito como um membro efetivo do seu grupo mas, que exige, em troca, o compromisso de obedecer às regras desse sistema, cumprindo com os mandatos que lhe são delegados.

A lealdade implica uma contabilidade de méritos familiares, termo utilizado por Boszormeny-Nagy e Spark (1973) para definir o que cada um de seus membros pode esperar receber e o que deve dar à família. Torna-se um padrão de medida da idéia que a família tem da Justiça no âmbito familiar. A incapacidade de cumprir as obrigações gera sentimentos de culpa que constituem forças secundárias de regulação do sistema familiar.

Bucher (2008) acrescenta que a lealdade é um conceito central na obra de Boszormeny-Nagy e que se refere a um sentimento de solidariedade e compromisso que unifica as necessidades e expectativas na família. É um tipo de vinculação que pode produzir uma configuração relacional mínima triangular: aquele que prefere, aquele que é preferido e aquele que não é preferido. Desta forma, quando surge o conflito de lealdades, ou seja, quando a pessoa desenvolve lealdade a duas pessoas concorrentes, se instaura o conflito.

Segundo a autora, a lealdade invisível, ou a inconsciente, manifesta-se nos membros de uma família que ficam ligados às demandas também inconscientes de seus ancestrais, levando-os a uma fidelidade que vai até mesmo contra seus próprios desejos. Esse tipo de lealdade se organiza com base na formação de mitos e segredos, e pode percorrer mais de uma geração. Ela pode ser compreendida como uma tentativa mascarada de equilibrar as relações verticais (transgeracionais, por se estenderem por várias gerações) que interferem nas relações horizontais (agrupamento de membros da família que pertencem a uma mesma geração, ou seja, cônjuges, irmãos e irmãs, primos e primas).

Assim, para ser um membro leal a um grupo, o indivíduo deve interiorizar as expectativas grupais e assumir uma série de atitudes a fim de cumprir os seus mandatos. De acordo com Falcke e Wagner (2005) as lealdades mostram-se estreitamente interrelacionadas tanto com a configuração como com a estruturação da família, criando laços entre as gerações.

Outro conceito desenvolvido por Boszormenyi-Nagy e Spark (1973) é o da parentificação que consiste na atribuição do papel parental a um ou mais filhos no sistema familiar. É uma atitude de um adulto transformando uma criança em alguém cujas exigências estão acima da sua capacidade cronológica. Essa ação implica uma inversão de papéis que pode perturbar a fronteira A parentificação pode fazer a criança perder a confiança em si mesma, quando não consegue realizar as expectativas apresentadas pelos adultos.

Ainda segundo Boszormenyi-Nagy, cada família traz consigo um mandato transgeracional cujo legado compreende tanto elementos positivos quanto negativos. Bucher (2008), discutindo esse conceito, assinala que o legado é o mandato transgeracional que transita entre as gerações na dimensão psíquica, e que, na maioria das vezes, se passa em nível inconsciente. Pontua que a herança recebida de uma geração cria obrigações em relação a seu doador, estabelecendo um vínculo entre o que dá e o que recebe.

Nesse sentido, o legado assegura a sobrevivência não só transgeracional, mas também é facilitador da sobrevivência da espécie humana. Entretanto, o legado pode estar sobrecarregado de conteúdos disfuncionais. Sendo assim, não se justifica a sua transmissão; havendo sim a necessidade de não perpetuar esse problema, visando contribuir para a saúde mental da família e das gerações seguintes (Penso e Costa, 2008).

Bucher aponta para o duplo sentido do verbo delegare, proposto por Stierlin, ao aprofundar o tema da delegação desenvolvido por Boszormenyi-Nagy e Spark (1973). Parte do duplo sentido do verbo delegare que signifca ao mesmo tempo enviar e confiar uma missão. Esse conceito implica que a pessoa delegada é enviada por sua família para cumprir uma missão, e ao mesmo tempo, é a ela ligada por um processo de lealdade. Há um vínculo de lealdade que une aquele que delega àquele que é delegado.

A autora ressalta ainda que o vínculo de lealdade toma forma na intimidade da relação pais filhos, sobretudo mãe e filho. Chama atenção ao fato de que os próprios pais, muitas vezes, delegam aos seus filhos fardos que carregam de decepções, necessidade de amor, frustrações ou traumatismos. De forma sufocante, os pais podem procurar satisfazer nos filhos algo que não puderam cumprir .

Destaca-se ainda, no que se refere ao processo de transmissão transgeracional, o trabalho desenvolvido por Murray Bowen ressaltando os conceitos de individuação, diferenciação, triangulação, projeção e transmissão multigeracional, que muito contribuíram para o conhecimento da transgeracionalidade (Bowen, 1970, 1978, 1998).

O modelo proposto por Bowen, desenvolvido a partir de seus estudos baseados na relação mãe-filho, parte da ideia de que a família é uma unidade emocional. Essa emoção torna-se um movimento reflexível da família como um sistema e suas partes. Conforme Bowen, a família continua conosco onde quer que estejamos.

O autor desenvolveu conceitos importantes para a compreensão do sistema emocional da família. A partir desses conceitos, sua teoria descreve de que forma a família, como uma rede multigeracional de relacionamentos, molda a interação entre individualidade e proximidade. De acordo com Bowen são duas as variáveis que exercem influências sobre o sistema emocional humano: o conceito de diferenciação do self e a ansiedade.

A “diferenciação do self” é um conceito fundamental que permite que cada membro da família se diferencie de seu sistema de origem. Nichols e Schwartz (2007) definem que é a capacidade de pensar e refletir, de não responder automaticamente a pressões emocionais, internas ou externas. É a capacidade de, diante da ansiedade, conseguir agir sabiamente.

De acordo com as ideias de Bowen, as pessoas possuem diferentes níveis de diferenciação do self; várias experiências de vida podem elevar ou abaixar o nível de funcionamento do self, mas muito poucas podem alterar o nível básico de diferenciação adquirido junto à família parental. Bowen observa que há algumas estruturas familiares com tamanha dificuldade de diferenciação que são definidas como “massa indiferenciada do ego familiar” ou “grude emocional”, e, com deficiência na discriminação do self, o que leva a um caos cognitivo coletivo e a uma “fusão” (Bowen, 1970; Nichols e Schwartz, 2007).

Entretanto o autor sustenta que a ansiedade é a maior entre as variáveis que afetam a operação do sistema emocional humano. Dividiu entre ansiedade aguda, que se constitui na resposta do organismo a uma ameaça real, e a ansiedade crônica, que se refere a um estado orgânico que existe, independente de uma situação específica.

Papero (1998) assinala que a ansiedade crônica parece ser transmitida por gerações na forma como o indivíduo percebe e interpreta o mundo e também como reativamente se comporta. Representa uma programação do sistema emocional do indivíduo. O autor sugere que as relações estabelecidas entre a criança e os responsáveis por ela têm fundamental importância no desenvolvimento e na transmissão deste tipo de ansiedade. Desta maneira, é na família que a ansiedade se evidencia, quando os sintomas crônicos de relacionamento e posturas denunciam a sua presença. O autor ainda destaca que cada geração, em uma determinada família, recebe o legado de um determinado nível de ansiedade crônica, deixado pela geração precedente e seu desenvolvimento (aumento ou diminuição) irá depender de cada pessoa e de cada grupo familiar.

Bowen também desenvolveu a teoria dos triângulos, a partir da observação da ansiedade no sistema familiar. Segundo ele, em resposta à ansiedade, os relacionamentos são influenciados por terceiras pessoas. Nos sistemas familiares o fenômeno da triangulação ocorre com muita frequência, podendo gerar ansiedade ou, também podendo equilibrar o estresse na relação. O autor assinala que o padrão de funcionamento de um triângulo é o mesmo em todo sistema emocional. Sendo assim, quanto mais baixo o nível de diferenciação e quanto mais importante a relação, mais intensos os padrões; em níveis mais elevados de diferenciação e em relações mais periféricas, os padrões ficam menos intensos.

Quando o grupo familiar está livre de ansiedade, os triângulos podem não ser observados. As pessoas funcionam em pares, acolhendo sem esforços os demais. No entanto, dependendo do nível da ansiedade, aparecem os triângulos característicos e sua natureza repetitiva os torna previsíveis.

Bowen ainda descreveu o processo de projeção familiar e observou, também, a posição de nascimento dos irmãos. Ao se referir à projeção no interior da família apresenta o processo pelo qual os pais transmitem o grau de diferenciação que atingiram aos filhos, de maneira diferente a cada um deles. As crianças podem sair de seu processo de desenvolvimento com um grau de diferenciação maior, do mesmo nível ou mais baixo do que os pais, dependendo da ansiedade a qual foram expostos. O padrão mais comum que ocorre é aquele em que o filho é o objeto desse processo de projeção, atingindo a menor diferenciação do self e se tornando o mais vulnerável a problemas (Bowen, 1970; Nichols e Schwartz, 2007; Bucher, 2008).

O autor também abordou a questão da posição na fratria, nas dinâmicas de personalidade e nas relações entre irmãos, oferecendo uma perspectiva importante para se reconsiderar a noção familiar da rivalidade entre irmãos (Bowen, 1970; Nichols, 2007; Bucher, 2008). Entretanto, o conceito de Bowen que mais contribuiu para o fenômeno da transgeracionalidade foi o processo de transmisão multigeracional, que descreve a transmissão dos esquemas familiares de geração para geração.

Nichols e Schwartz (2007) apontam que esse conceito descreve a transmissão de ansiedade de geração para geração, pois em cada geração, o filho mais envolvido na fusão familiar avança para um nível mais baixo de diferenciação do self (e uma ansiedade crônica), enquanto o filho menos envolvido avança para um nível mais elevado de diferenciação (e menor ansiedade). Desta forma, o nível de diferenciação pode aumentar ou diminuir dentro de uma família por várias gerações. Os autores acrescentam que a teoria do Bowen ultrapassa dizer que o passado influencia o presente, pois ela mais do que isso, especifica o caminho ao longo do qual os processos emocionais são transmitidos através das gerações.

Uma das contribuições ao fenômeno do transgeracional, então, trazidas por Bowen (1978) foi a sua observação de que os esquemas familiares se repetem de geração em geração; os papéis, os triângulos que se formam no interior da família, são esquemas geralmente inconscientes, que se reativam através das gerações. Constata-se, analisando os fenômenos transgeracionais, que estes não se expressam de forma isolada na dinâmica familiar pois estão em um processo contínuo de interação.

Sendo esse processo de transmissão dos padrões de relacionamento muito visível nas relações conjugais, alguns terapeutas de família desenvolveram modelos de terapia conjugal incluindo as famílias de origem. Framo (1999) considera que é preciso incluir três gerações no trabalho com casais ou famílias uma vez que as atuais dificuldades conjugais, pessoais, e parentais são esforços de reparação para corrigir, controlar, defender-se e apagar antigos e perturbadores paradigmas relacionais ligados à família de origem. O autor afirma que as forças transgeracionais veladas exercem uma influência crítica sobre as relações íntimas atuais.

Influenciadas pelos conceitos da teoria boweniana, Carter e McGoldrick (1995) acrescentaram o ponto de vista multigeracional ao seu trabalho sobre as fases distintas para o ciclo de vida da família atual. Argumentaram que a passagem pelas várias etapas do ciclo de vida e a forma de lidar com as crises dependem dos recursos da família nuclear, mas também dos legados familiares de outras gerações, isto é, da maneira como as gerações anteriores resolveram essas mesmas crises. Consideram, assim, que o padrão dominante de família nuclear é um subsistema emocional reagindo aos relacionamentos passados e se baseiam no modelo mítico que perpassa as gerações.

Assim sendo, é de grande importância compreender os mitos familiares como transmissores de padrões relacionais multigeracionais. O conceito de mito na terapia familiar pressupõe que a família tem um modelo mítico que protege o sistema contra a ameaça de destruição e caos. De acordo com Ferreira (1963), o mito tende a manter e até aumentar o nível de organização da família, estabelecendo padrões que se autoperpetuam. O mito é um elemento organizador, com a finalidade de garantir a coesão interna e proteção externa da família. Segundo Falcke e Wagner (2005) os mitos, como condutores das histórias nas famílias, deixam claro quais tipos de comportamentos são esperados dos membros familiares, quais são aceitáveis e quais são proibidos.

O mito familiar é um sistema de crenças que diz respeito aos membros de uma família, seus papéis e suas atribuições em suas transações recíprocas; é constituído de convicções compartilhadas pelo conjunto de pessoas que integram esse sistema e são aceitas a priori, mesmo quando irreais, como uma coisa sagrada e tabu; serve como mecanismo homeostático, tendo por função manter a coesão grupal e fortalecer a manutenção dos papéis sociais de cada um. Por esta razão, dificulta e até impede o sistema familiar de se deteriorar ou até de se destruir (Ferreira,1963; Bucher, 1985).

Em todas as famílias, o mito familiar está presente, definindo as regras, as crenças e os papéis dentro delas, ditando sua forma de funcionamento e mantendo sua coesão. E é a memória familiar que vai garantir a sua reprodução simbólica ao longo das gerações, lembrando o mito fundador da célula familiar. Assim, as famílias selecionam o que consideram importante ser compartilhado por todos os seus membros e essas informações são transmitidas ao longo das gerações (Penso, Costa e Ribeiro, 2008).

A memória familiar permite que a família defina os rituais que organizam as relações entre os seus membros; os rituais são produtos da tradição e têm como função primordial transmitir e perpetuar o mito familiar. Tanto os mitos quanto os ritos são fundamentais no desenvolvimento da família, fornecendo um sentido de pertencimento; entretanto, necessitam ser suficientemente flexíveis para se transformarem, ao longo do tempo. Na medida em que provocam uma repetição estereotipada das relações e comportamentos de forma transgeracional, os mitos podem dificultar o desenvolvimento de novos padrões.

No estudo dos mitos familiares e de sua transmissão por meio da memória e dos ritos familiares, observa-se que eles delegam a cada membro da família um papel e um destino bem precisos. A delegação procura dar uma significação à vida, definir para as gerações seguintes os principais aspectos da família atual e o que se espera que tenha continuidade (Boszormeny-Nagy, 1973).

Tem-se, então, que o processo transgeracional implica na idéia de trazer como referência os modelos familiares e sociais experimentados historicamente. Mesmo havendo a possibilidade de que estes modelos sejam repetidos, contrariados ou transformados, de qualquer forma, cada uma destas alternativas parte dos padrões de relação conhecidos.

Há de se destacar ainda o trabalho de Maurizio Andolfi, com uma visão da família multigeracional como uma rede relacional de papel fundamental na vida do indivíduo. Andolfi (1998) propõe uma abordagem clínica trigeracional que leva em conta a dimensão histórico-evolutiva do sistema familiar. Considera importante a história pessoal do paciente, mas também a de seus pais e a das relações que estes mantêm entre si e com suas famílias de origem. De acordo com o autor quanto mais as relações da família de origem se encontram isentas de elementos conflituosos não resolvidos, mais a escolha de um parceiro é livre. Assim, ao se considerar a família de origem como um modelo de aprendizagem, pode-se pensar nas relações nela desenvolvidas exercendo forte influência sobre as relações íntimas atuais. Nessa perspectiva, em cada casal não existem apenas um homem e uma mulher unidos, mas dois sistemas familiares. É do encadeamento das histórias pessoais dos parceiros que se cria uma nova família (Boszormenyi-Nagy e Spark,1973; Andolfi, 1998).

Andolfi (1998) retoma os conceitos de mandato ou legado familiar proposto por Stierling para descrever o modo como os pais designam um papel e deveres para seus filhos. Segundo o autor este mandato representa o traço de união entre o mito familiar e a maneira como este irá se expressar pelas expectativas de cada membro da família e, principalmente, pelo intermédio dos pais. Ainda de acordo com esse autor, as relações atuais se enraízam nas famílias de origem de cada um; elas são sobrecarregadas pelo peso das ligações com as gerações passadas e das quais os indivíduos nelas envolvidos não têm consciência.

 

Transgeracionalidade e educação

Ao longo da história, a educação dos filhos passou por inúmeras transformações. Foram mudanças geradas pelas modificações pelas quais a família passou, questionando e redefinindo suas relações afetivas e sexuais, suas ideias e comportamentos e que têm como conseqüência um novo conjunto de representações acerca do funcionamento e estrutura familiar, principalmente entre gerações diferentes.

Como o processo de mudança social é contínuo, algumas dimensões e tendências da orientação social se apresentam nas mudanças da família, como a do ideal hierárquico para o ideal igualitário. Rocha Coutinho (2006) aponta como uma das mudanças na estruturação das famílias, uma maior valorização da vida pessoal e subjetiva de seus membros em substituição às rígidas posições hierárquicas tradicionais.

Segundo a autora, são questionadas as diferenças de papéis e posições de homens e mulheres e as relações autoritárias entre pais e filhos, quando são estabelecidas nas famílias, relações mais igualitárias, baseadas no diálogo e não na imposição autoritária. Nesse sentido, o diálogo e o respeito começam a substituir a obediência e o respeito hierárquico.

Na família de orientação hierárquica, definida e legitimada pelas posições que seus membros ocupavam, pelo sexo (masculino e feminino) e pela idade (adulto e criança) existia uma distância posicional e afetiva, que demarcava rigidamente as fronteiras entre pais e filhos, marido e mulher. Uma vez que este modelo tenha sido abalado, abre-se espaço para uma proximidade, o que flexibiliza as fronteiras entre eles.

Romanelli (2006) assinala que essa mudança do significado das relações de autoridade na família decorre do individualismo e das mudanças nas relações de gênero. O individualismo traz a valorização do sujeito psicológico, independente da posição que ocupa, todos os membros da família são considerados seres de direito; muda o significado dado aos lugares da mulher e da criança, uma vez que estes passam a ser valorizados como pessoas e não pelas diferenças de gênero e idade.

O individualismo traz uma profunda mudança nas relações de gênero, havendo uma renegociação dos papéis masculino e feminino. As relações parentais também tornam-se mais fluidas, o que permite uma negociação entre as gerações, em que ambos os pais (pai e mãe) têm autoridade, e, os filhos, reconhecimento de suas individualidades. As relações de poder mudam de um poder imposto para um poder negociado. As relações intergeracionais são enfatizadas pelas relações puras, com maior valor ao diálogo (Coelho, 2006).

Benincá e Gomes (1998) assinalam que a família tradicional, percebida como estável, fornecia o código moral em posições e papéis segregados e complementares de pai, mãe e filhos, como também o permitido e o proibido para os ocupantes de cada posição. Os sujeitos internalizavam um código moral rígido e bem demarcado. Com a transformação da família, esta fica incerta quanto às regras a seguir, o que traz, como conseqüência, um novo conjunto de representações acerca do funcionamento e estrutura familiar, principalmente entre gerações diferentes.

A abertura ao diálogo propiciou uma melhoria na comunicação emocional. Uma vez que as certezas dos valores se abalaram, trouxe, também, insegurança e indefinições, quando os pais, ambivalentes, deixam aos filhos o direito às escolhas desligadas das consequências e responsabilidades decorrentes delas, o que retarda o exercício de sua autonomia.

O que se observa na atualidade é que novos conhecimentos e, com eles, novas demandas, impulsionaram o processo de atualização da família. Desta forma, as experiências do passado vão servir como um referencial que pode ser repetido, transformado ou negado na construção de novas relações familiares entre pais e filhos.

Wagner, Predebon e Falcke (2005) constataram que na perspectiva da transgeracionalidade social, se pensarmos na dinâmica de transmissão de valores, legados, crenças e mitos, evidencia-se, nas famílias contemporâneas, a tentativa de negação do passado. De qualquer forma, o que se observa, assim, é que o registro do passado está ainda servindo como referencial, mesmo que na forma de transformação ou negação e não na forma de repetição.

O fenômeno da transgeracionalidade social foi nomeado pelas autoras para se referir aos aspectos que perpassam a história e se mantêm ao longo da evolução da sociedade. É um conceito que abarca o processo de transmissão de valores, crenças e legados sociais que são repassados a cada nova geração, por meio da definição dos padrões de comportamentos esperados ou proibidos, assim como, da exigência de aceitação e comprometimento com os mesmos (Zordan, Falcke e Wagner, 2005).

Parece haver, na contemporaneidade, a coexistência de valores e padrões de comportamento tradicionais, muitas vezes em conflito, com novos valores e padrões de comportamento no interior da família. Portanto, o grupo familiar é marcado por uma dinâmica intensa, exigindo de seus membros um constante exercício de repensar o presente e o futuro. É importante considerar que entre a necessidade e possibilidade de mudanças, situa-se a resistência ou a aceitação, que, não necessariamente precisam ser excludentes, mas sim interativas.

Wagner, Predebon e Falcke (2005) concluíram em estudos sobre os valores educativos com adultos jovens que o que é dito pelos pais ao longo da vida dos filhos pode funcionar como um balizador de condutas, valores e projetos pessoais. Pode, também, influenciar a forma como os sujeitos irão vivenciar determinadas situações no futuro. Entretanto, considerando que a transmissão de valores é um fenômeno que está inserido num contexto complexo, os filhos podem eleger valores similares aos dos pais, porém nunca idênticos. Pode-se considerar que ainda que os processos transgeracionais sejam, na maioria das vezes, abordados por uma perspectiva inconsciente, existe um movimento consciente dos sujeitos de reiterar e validar as suas vivências familiares, buscando perpetuar a educação recebida em sua família de origem.

Todas essas reflexões nos conduzem a pensar que a transmissão de questões transgeracionais referentes a valores, crenças, legados e mitos familiares são inevitáveis e fazem parte da própria estruturação do núcleo familiar, o que nos instiga a analisar esse processo na relação que se estabelece entre mãe e filha, no contexto contemporâneo.

 

 

 

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